As fagulhas e as cinzas austeras
Aproveitando as saudosas lembranças do meu amigo Monsenhor Barbosa, hoje gozando junto a Deus da vida eterna, não poderia deixar de recordá-lo das histórias por ele contadas, às quais teve a oportunidade de participar durante sua vida pastoral pelo interior fluminense. Entre vários episódios, além do descrito na edição anterior, cuja publicação num dos jornais causou bastante graça junto aos leitores, outro que não poderia deixar de reproduzi-lo, se destacou quando integrava uma comitiva eclesiástica rumo à cidade de Vitória (ES).
Partindo no início da noite da estação ferroviária da Leopoldina Railway no Rio de Janeiro, cujo vagão fretado me surpreendeu pelo número de religiosos e, ao acomodar-me, fui duplamente surpreendido com a presença ao meu lado, no par de poltronas, de um seu professor no seminário, o não menos famoso Monsenhor Salgado, cuja reputação era tida além de grande mestre, como também educador extremado pela rigidez educacional exigida na conduta dos seminaristas à carreira religiosa. Não aceitava a mínima contestação que fosse contra os dogmas e princípios básicos do clero, pois sacerdócio tinha que ser exercido acima de tudo com retidão e respeito como exemplo de dignidade e moralidade junto aos seguidores da igreja católica.
Seguia o expresso pela noite, com o silêncio quebrado pelos roncos e apneias, quando se erguendo do lugar, Mons. Salgado caminha à direção do toalete. O tempo passava, o trem corria e o monsenhor não retornava. Preocupado com a demora excessiva, mesmo sonolento entre cochilos, padre Barbosa deixou o lugar indo rumo ao toalete. Ao aproximar-se da porta e tocá-la, não houve resposta e tornou a bater. Ninguém respondeu. Assustado, acionou a maçaneta e a porta se abriu. Empurrando-a lentamente, um forte odor de queimado exalou pela fresta entreaberta. Mais que depressa a escancarou e pode observar, mesmo sob a ínfima claridade da luz do carbureto, Monsenhor Salgado com a cabeça encostada ao madeirame do vagão, parecendo em apuros dentro do reservado espaço bastante enfumaçado. Chamando pelo religioso que se mantinha inerte, tocou-lhe aos ombros sacudindo-o. Um tanto desnorteado e alheio, ergue-se com dificuldade do vaso e, tossindo seguidamente acompanhado de engasgos, deixou o toalete abraçando-se ao padre Barbosa, que segurando pela cintura, cambaleantes, se chegam às poltronas. Ainda troncho a recuperar-se do complicado ocorrido e com a voz rouca quase inaudível, sussurrando, responde a indagação do padre sobre o problema e diz: - Apenas peguei no sono em incômoda posição. Nisso padre Barbosa mesmo na baixa luminosidade ambiental, observou que a batina do religioso, na altura das coxas, havia considerável rombo. Chamando a atenção do monsenhor, o mostrou o dano, que ao olhar e verificar o estrago balbuciou: - Ah essas locomotivas e suas fagulhas incandescentes expelidas pelas chaminés! Retrucando tal argumento, padre Barbosa contestou alegando ser impossível, vez que as janelas dos toaletes são fechadas e fixadas às molduras e, portanto, não havia possibilidade à penetração das fagulhas. Um tanto desarticulado, mas sem perder a dita autoridade e tomado pela austeridade, Mons. Salgado replicou dizendo que eram mistérios de Deus. Se achando um idiota, não aceitando tal argumento, óbvio, treplicou indagando se por acaso a queima da batina não fora causada pelo charuto que fumava, pois seu paramento está tomado de cinzas na altura do peito junto ao crucifixo. Tentando limpar-se, ergueu a imagem e, fixando-se ao Cristo, balbuciou: - Senhor lhe peço mil perdões por ter cometido tal falta. Só que não posso prometer desculpas e ter que aceitar contestações deste meu ex-discípulo que tão bem soube se comportar diante do seu mestre, mostrando-se digno de ser um sacerdote. Virando-se ao Padre Barbosa, carrancudo e cheio de autoridade, falou: - Padre, jamais conteste e ponha em dúvida um argumento do seu superior. O queimado foi causado pelas fagulhas da Maria Fumaça. Estamos compreendidos e entendidos?
- Obrigado pela atenção em me socorrer e agora se acomode tendo bons sonhos. Durma na paz de Deus!
Barbosa, deixando expor um sorriso, o retribui dizendo: Que Deus seja louvado...
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