Medo do castigo, a mentira e o ator.
Saboreávamos delicioso sorvete, quando na mesa ao lado dois casais que degustavam da mesma delícia, em conversa descontraída começaram a tecer comentários elogiosos ao passeio que acabaram de efetuar no Trem das Águas.
Dizia um dos homens, que de fato o passeio foi além de maravilhoso, uma recordação viva a qual o fez rebuscar o seu passado, trazendo passagens adormecidas na memória de uma época de sua vida interiorana, em que o trem ainda a vapor é um marco importante e perenal, que sempre por ele será reverenciado.
Contava que anos a fio, diariamente, se utilizou do trem para conduzi-lo ao colégio em Passa Quatro. De segunda a sexta às 5h 25m, embarcava na cidade de Liberdade onde morava. Lembrava-se que inúmeras vezes de volta a casa não pagava passagens, ocultando-se nos sanitários da 1a classe. Em outras ocasiões aproveitava-se de alguns cargueiros que obrigatoriamente paravam em Passa Quatro e pegava carona. Recordava-se que por duas vezes se viu em situações aflitivas ao introduzir-se nos vagões dos cargueiros. Na primeira, na ânsia de esconder-se, não atentou para a carga e se deu mal. Eram fardos de couro de bois e teve de suportar o odor fétido do curtume que o fez passar muito mal. Na segunda, o trem não parou em Soledade apeando o ramal de Cambuquira. Mas como havia se posicionado a escada lateral do vagão para descer, acabou sendo visto pelo Chefe da estação, que por telégrafo, comunicou-se com a próxima estação sobre a sua clandestinidade. Depois de o comboio percorrer alguns quilometros, parou numa localidade desconhecida, que hoje se chama Olímpio Noronha. Apavorado, saltou sobre os trilhos onde foi surpreendido pelo Chefe da estação.
Contando sua "estoriada", acabou convencendo o homem que, penalizado, o repreendeu permitindo que embarcasse de volta a Soledade no expresso das 16h 30m.
Mas com a conexão desnorteada ao chegar em Soledade, obteve informações que o trem a levá-lo a Liberdade seria o das 19h 30m. Sem saber como agir, apavorado a pensar em seus pais que àquela altura deveriam estar desesperados, resolveu procurar carona. Infelizmente não foi bem sucedido e retornou a estação. Todavia, diante de sua aflição, um caminhoneiro que havia descarregado queijos, ofereceu condução até Baependi no que aceitou.
Durante a viagem, em conversa, contou ao homem uma "história convincente", tentando convencê-lo a levar em Liberdade, onde aos prantos falou sobre o possível desespero de seus pais. Diante do choro, o cidadão comovido cedeu e o levou a cidade.
Chegando em casa já passando das 20h, ressabiado, esperando uma repreensão que talvez lhe custasse severo castigo, recorreu a encenação teatral, pois dera certo com o chefe do trem e o caminhoneiro, e inventou mais uma "estoria" alegando haver sido vitima do chefe do trem, que o surpreendeu no sanitário escondido para não pagar passagem. Pois perdera o bilhete no colégio e não tinha dinheiro para comprar outro. E com isso foi obrigado a ajudá-lo no trem até Três Corações. Indignado, seu pai reprovou o ato desumano do chefe do trem e o perdoou dizendo para ter mais cuidado com os bilhetes, evitando cenas como estas.
Vendo que dera certas suas encenações, daquele dia em diante passou a dedicar-se ao teatro, ingressando no curso de teatro do colégio. Hoje é quase 55 anos de vida artística - atualmente como agente e empresário teatral - depois de uma carona mal sucedida num vagão de carga, um susto levado por um chefe de estação, um caminhoneiro sensibilizado pela emoção, e o medo de um castigo severo, tenta reverenciar a ferrovia através do Trem das Águas. Afinal as cortinas do palco de uma vida, foram abertas por ela; a RMV (Rede Mineira de Viação), tendo o trem como pano de fundo nesse cenário onde os trilhos levaram a um belo destino...
Só lamento não me recordar do nome completo do ator. Apenas lembro-me de chamar-se Geraldo. O que não me impediu em contar o episódio em si; onde o reconhecimento foi na verdade a maior prova de gratidão pela carreira abraçada.
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