O Caroço do Angu
Recordando das histórias contadas pelo meu saudoso pai Luiz, que teve nos trens seu início de vida profissional na década de 30, operando como caixeiro viajante percorrendo todo o interior mineiro representando comercialmente a famosa fábrica de tecidos Bangu do Rio de Janeiro e, portanto, possuidor de vasto cabedal de episódios inerentes aos trens, ocorridos durante suas infindáveis viagens, não poderia deixar de contar um fato inusitável, vivenciado por ocasião de uma viagem cujo destino era a cidade de Alfenas.
Ao embarcar na Central do Brasil, encontrou-se com o amigo que, como ele, também era caixeiro viajante e destinava-se à mesma localidade. Este cidadão, de origem austríaca, de nome Herman, representava o importador, no Brasil, dos tradicionais móveis austríacos, cuja primeira linha baseava-se nas admiráveis e confortáveis cadeiras de balanço de palhinha trançada.
Herman, espavorido, pois chegou quase na hora da partida do expresso, revelou que seu atraso se deveu à gula devido à fome que o fustigava. Valendo-se de suculento e apimentado angu à baiana nas imediações da Central, que, por sinal, segundo confessou estava primoroso, não notou a hora passar, já que esta gulosa refeição apetitosa agravou-se em dificuldades, a fazê-lo correr em busca do trem, cuja passagem limitou-se apenas a viajar de 2ª classe, fato correlato a Luiz, pois os vagões de 1ª classe permaneciam lotados. Já embarcados, seguiam sentados sobre os acentos de madeira.
Lá pelas tantas, em plena Minas Gerais, com os glúteos bem doloridos e as pernas inquietas pelas trocas constantes de posições, Herman, parecendo aflito e mostrando-se assustado, apresentando sudorese excessiva, ergue-se dizendo que iria ao toalete; porém, de imediato retornou, indagando sobre a ausência de reservados no vagão. Obtendo resposta afirmativa, pois não eram comuns em 2ª classe, o indicou utilizá-los na 1ª classe. Apressado então, foi à luta conduzindo sua pasta a apertar a barriga com a outra mão a equilibrar-se pelo corredor.
O tempo corria quando, de repente, um murmurinho à frente do vagão se transforma num alto falatório com um homem a gesticular erguendo-se do assento saindo porta afora. Alertado pela encrenca e notando a demora do amigo, Luiz deixa o local e vai apressado à procura do austríaco. Ao abrir a porta de acesso à varanda, assusta-se ao ver Herman à escada do carro, com as calças arriadas abaixo dos joelhos, expondo os alvos glúteos ao vento, a defender-se com a pasta dos ataques enfurecidos daquele cidadão que se ausentou do interior do vagão esbravejando. Em ato reflexo, detém o agressor aplicando-lhe uma gravata, puxando-o a jogá-lo ao chão no intuito de evitar possível tragédia. Herman, que tentava se ajeitar, já na varanda, a ouvir desaforos do agressor que, ainda no chão, o agredia com palavras, abre a pasta e rasga algumas folhas do caderno do mostruário e faz o uso natural do seu asseio. Nisso, Luiz, sob risos, olha o homem que se erguia e observa que a lapela do paletó do cidadão estava bem salpicada de detritos amarronzados, logicamente mal cheirosos e que, enfurecido, vociferava exigindo ressarcimento pela lavagem do terno. Tentando apaziguar o clima, Luiz responsabilizou-se pelo ato de infortúnio verificado, solicitando ao cidadão, além de desculpa, que aguardasse no seu lugar com paciência que tão logo seu amigo se recompusesse, iriam conversar no que concordou um tanto aborrecido, adentrando ao vagão.
Não se contendo, Luiz, gargalhando, tenta falar com Herman, quando o austríaco já praticamente composto e refeito fala:
- Luiz, não houve tempo para atingir a 1ª classe e não tive alternativa se não me valer da escada, esquecendo que a “caganeira” seria lançada pelo vento do trem à lateral do vagão, embora tenha descido ao último degrau e posto os glúteos bem pra fora. Não sei o que houve, pois os resíduos subiram e atingiram as janelas. Mas a propósito, quanto você acha que devo tragar pela lavagem do terno do “sortudo”, mesmo sabendo que não tive culpa, já que o culpado foi o angu?
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