Rogério Medeiros Garcia de Lima*
“Ó incomparável autor! Ó feliz D. Quixote! Ó famosa Dulcinéia! Ó facecioso Sancho Pança! Juntos vivereis através das idades para recreio e regalo do gênero humano” (Miguel de Cervantes).
(...) Carlos Mário da Silva Velloso, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, escreveu sobre Dom Quixote de La Mancha, personagem imortal da obra do escritor espanhol Miguel de Cervantes: “O Quixote era a expressão maior do idealismo. Querer salvar o mundo, é extraordinário; julgar que é o salvador do mundo, é ridículo, já o proclamara San Tiago Dantas, escrevendo sobre o Quixote. A notável obra de Cervantes deve ser assim entendida. O Quixote não se julga o salvador do mundo. O Quixote quer salvar o mundo. (...) O Quixote é o meu herói” (revista Justiça & Cidadania, novembro 2011, p. 8).
O texto do ministro Velloso instigou-me. Após mais de duas décadas de exercício da magistratura, trago na alma a quimera do cavaleiro errante de Cervantes. Certamente, a mesma fantasia anima o espírito de incontáveis magistrados no Brasil e mundo afora...
(...) Ao enlouquecer por excesso de leitura de romances de cavalaria, Dom Quixote tornou-se a mais bela metáfora do esforço humano para buscar o impossível equilíbrio entre sonho e realidade (FRENETTE, Cavaleiro da condição humana).
Juízes são quixotescos quando querem salvar o mundo. Isso é extraordinário, observaria San Tiago Dantas. Ridículo seria se considerarem os salvadores do mundo.
Com a licença do ministro Carlos Velloso, ao seu herói Dom Quixote calha o papel de herói da magistratura brasileira.
Os magistrados trazemos na alma a quimera do “Cavaleiro da Triste Figura”. A toga é nossa “armadura” e a caneta é nossa “lança”. Dramaticamente solitários, como observava Piero Calamandrei (Eles, os Juízes..., p. 172), não temos um fiel Sancho Pança por escudeiro.
“Togados da Triste Figura”, montamos o Rocinante das carências materiais, vagamos pelas comarcas e galgamos entrâncias e instâncias.
Recordamos Sísifo, o lendário rei de Corinto. Pelas iniquidades que praticou na terra, foi condenado a rolar, até o topo de uma colina, enorme pedra. Quando a pedra atingia o ponto mais alto, rolava novamente para baixo. Tinha de recomeçar a pesada tarefa e sua punição se tornou eterna (HARVEY, 1987:466).
Já refletimos sobre o papel do Poder Judiciário no Terceiro Milênio (GARCIA DE LIMA, 2003:15). Durante todo o século XIX, houve o predomínio do Poder Legislativo sobre o Poder Executivo. Era preciso consolidar o princípio da legalidade, apanágio das democracias liberais. Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei. Todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido. O governante atuará submetido à Constituição e às leis elaboradas pelos representantes dos cidadãos.
O século XX foi o século das Grandes Guerras e das crises econômicas. Fez-se necessária a intervenção do Estado na ordem econômica e social. O Poder Executivo concentrou poderes: em situações emergenciais, poderá legislar mediante instrumentos decretos-leis, medidas provisórias e congêneres.
Se o século XIX foi do Legislativo e o século XX foi do Executivo, o século XXI será do Judiciário. Na nova centúria, o Poder Judiciário conciliará os atritos emergentes entre os demais Poderes constituídos. Viveremos, outrossim, a “Era dos Direitos”, a que se referiu Norberto Bobbio (1996). Além da liberdade individual e da propriedade, estarão garantidos direitos mais abrangentes. Dentre outros, direitos à cidadania, à dignidade, à justiça social, ao meio-ambiente saudável, ao consumo sustentável etc.
Moinhos de vento. Perdemos o juízo? Ou nunca tivemos? Vale até o duplo sentido..."
(...)
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