Tamancada além da conta
Recordando-me do saudoso amigo lusitano, Alberto, que viveu por anos a fio como quiosqueiro à estação ferroviária de Paty de Alferes, RJ, cuja simpatia cativava a todos não só pela educação; segundo dizia-se um lisboeta pela “finesse”, mas pelo peculiar sorriso com dentes muito alvos e dadas as mesuras num simples tratamento a quem quer que fosse, sem distinção de classe, cor ou origens que a ele se chegasse.
Certa ocasião, ainda um adolescente, cheguei ao quiosque de Alberto no intuito de saciar a sede que me fustigava, após longa caminhada sobre o leito férreo, no percurso de ida e volta a cidade de Governador Portella, mais ou menos 20km. Como o lusitano não se encontrava no momento, vez que o quiosque mantinha-se aberto, resolvi abancar-me num dos bancos da estação e aguardá-lo, aproveitando a relaxar as endurecidas pernas. Não demorou, Alberto deixou a sala da administração caminhando ao seu negócio e, ao passar por mim, cumprimenta-me com inconfundível sorriso e indaga-me o que desejava. Retribuindo o cumprimento, ao elevar a cabeça, observo que sob o chapéu tipo boina com pala de veludo verde escuro, havia uma faixa de gaze toda a volta da cabeça. Assustando, elevei-me do banco indo ao quiosque a perguntar o que havia ocorrido.
Ajeitando o boné de maneira cautelosa, disse que o ferimento fora causado por uma autêntica tamancada – tamanco a quem não teve a oportunidade em conhecê-lo; é uma espécie de chinelo dotado com uma tira de couro passada de um lado ao outro à altura do peito do pé, confeccionado em madeira numa peça só, onde a suposta sola e salto elevam-se de 2,5cm a 3,00cm do piso aos pés. Sua origem, segundo consta, é portuguesa, e sua utilização visava na proteção ao frio, pois a madeira é um ótimo isolante térmico. Claro que existem tamancos mais sofisticados do tipo holandês, fechados como botas – proveniente dos amarrados de tamancos que seu Manuel, o vendedor, havia deixado sob sua guarda enquanto percorria a clientela da cidade na entrega dos também ditos chócos (tamancos).
Contou-me que àquela manhã, o quiosque estava concorrido, e a presença de fregueses fazia-se necessário agilizar o atendimento, vez que o expresso de Paraíba do Sul não tardaria a chegar e dada à pequena permanência do trem nos embarques e desembarques, o atender aos embarcados tinha a preferência pela escassez de tempo, já que Alberto era um só e se virava para satisfazer a todos. Só que desta vez aconteceu um imprevisto. Ao ouvir o silvo a ecoar pela plataforma liberando à partida da composição, apressado a atender um passageiro embarcado, ao correr para pegar a encomenda, no que penetrou no quiosque, não soube o porquê, esbarrou forte na geladeira, que em consequência teve deslocado o amarrado de tamancos, que despencou do refrigerador o atingindo à lateral da cabeça a jogá-lo ao chão. Tonto, sem poder se erguer, tanto pelo impacto como pela dor, permaneceu sentado a surpreender-se ao passar a mão à cabeça e constatar um sangramento. Passados alguns minutos, ainda atordoado, deixa o local trôpego indo à procura do chefe da estação, seu Pereira, que ao vê-lo naquele estado, o ampara, levando-o à sua sala. Com demora providencial, lá estava o lusitano de retorno ao quiosque, tendo a cabeça enfaixada com ataduras de gaze, em que, visivelmente troncho, chega-se ao seu negócio. Só que, ao entrar, surpreende-se mais uma vez com a falta dos amarrados de tamancos e passa a ter agora, na verdade, duas dores de cabeça.
Amargurado e bem contrariado pela sucessão de acontecimentos, pois as consequências foram as piores possíveis, quando tentava pôr ordem na casa, eis que surge no balcão do quiosque o amigo Manuel, que se espanta ao vê-lo enfaixado e indaga o que aconteceu. Alberto, bem desatinado, vira-se ao patrício e responde: “- Foi uma tamancada!” Manuel, ao ouvir, mais surpreso ainda, retruca: “- Quem deu?” Alberto, mais irritado fica, e treplica: “- Ora bolas, fui eu mesmo! Mas o pior é que os tamancos pelo visto saíram andando e desapareceram. Manuel, sorrindo, expressou-se: “- Ora, pois, tamancos não andam sem os pés a conduzi-los, mesmo porquê, estive aqui e, como não se encontrava, os conduzi a despachá-los pelo trem à Cavarú ainda hoje, para onde também seguirei. “A propósito, faço questão de presenteá-lo com um dos novos tamancos confeccionado com tira de couro forrada, a evitar ferir os artelhos de nº43, que deve ser o seu tamanho de pé.”
Alberto, ao olhá-lo, coça com dedo o cocuruto da cabeça bem dolorida, fica a pensar e fala: “- Agradeço, Manuel. Mas já imaginou se um dia a cachopa lá em casa resolve utilizar esta “arma de calibre 43” quando o ciúme lhe subir à cabeça? Não, não quero não, agradeço sua intenção, mas só eu sei o que é a dor de uma tamancada!”
Manuel, entristecido, responde: “- Mas você não sofreu uma tamancada, mas sim uma porrada de tamancos na cabeça! Se não queres, vou dá-lo ao chefe Pereira, pois é um solteirão convicto”, e certamente não correrá o risco de sofrer tamancadas, não é verdade ? Deixando o quiosque, lá foi Manuel a caminho da administração à procura de Pereira, a desejar ao patrício, Alberto, um pronto restabelecimento...
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