Trem e teatro unidos pela cultura
Numa ocasião, ao participarmos de um evento teatral no Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro, tivemos a grata surpresa em conhecer um senhor “bem vivido” de nome Lobato, que segundo revelou ter sido um artista e que hoje se orgulhava por haver feito parte, a quase 70 anos, de um grupo itinerante de teatro com o apoio da E.F.C.B. (Estrada de Ferro Central do Brasil), na utilização dos transportes nas locomoções destinadas às cidades interioranas, onde graças a Deus sempre obtiveram sucesso nas apresentações encenadas.
De acordo com sua narrativa, este saudoso grupo de abnegados artistas tinha o objetivo de levar as artes cênicas àquelas populações desprovidas de entretenimento, a conhecerem o que era uma apresentação teatral em que somente tinham nos eventuais circos, que vez por outra pelas suas cidades se apresentavam, a ter nos palhaços seus esquetes de comicidade, suas encenações entre um e outro quadro das atrações circenses como: trapezistas, malabaristas, equilibristas, animais adestrados, entre vários outros. Mas como dizia o simpático Lobato, este empreendimento artístico cultural só foi possível graças à ferrovia, que reconheceu ser o grupo uma companhia séria, cujo intuito de fato era levar aos interioranos um pouco do lazer cultural encenando peças acessíveis à compreensão do povo, de conteúdo leve, objetivando agradá-los e poder, assim, retornar com outras peças dignas de boa aceitação tanto numa comédia ou drama.
Depois de escolher a peça a ser excursionada, ensaiada e exaustivamente repassada pelo grupo, ter a confecção dos cenários providenciados e concluídos, e ao empresariado contratadas as apresentações, junto à ferrovia apresentava-se a programação e roteiro para finalmente terem o passe-livre e autorização a conduzir via vagão de carga os cenários, malas de roupas e toda a parafernália teatral, que ficaria sob guarda da estação local, até a chegada do grupo, onde eram retiradas à montagem do espetáculo a ser encenado.
Esta logística vinha funcionando a bom termo já há quase 6 meses, quando surgiu a primeira dificuldade, ou melhor, um contratempo o qual deixou o grupo bem desapontado e “de calças curtas”. Após apresentações de sucesso em Barbacena com 4 dias de casa cheia (cinema local) e repercussão bem estimulante a atrair o público de cidades circunvizinhas, sem que pudesse prolongar mais a temporada dados os compromissos a cumprir na grade de apresentações e, cujo destino era São João Del Rey, foi firmado compromisso de retorno da excursão em que se fariam duas apresentações. Deixaram àquela manhã de segunda-feira pelo expresso a cidade com destino a São João, onde após baldeação finalmente desembarcaram com uma enorme preocupação pairando no ar, quando foram avisados de que seus apetrechos teatrais não os acompanhavam. Porém, os chefes do trem e da estação os tranquilizaram, pois através de via telégrafo seria providenciado o traslado das bagagens de Barbacena. Um tanto preocupado, o grupo foi a caminho dos empresários onde o problema exposto transformou-se em apreensão, no que se pese o comprometimento da ferrovia em assumir a responsabilidade. Com o passar dos dias, nada de notícias, quando à manhã de quinta-feira, dia da estreia, enfim o desastre. As malas foram enviadas a São João Nepomuceno pela Minas Oeste Railway. E agora, o que fazer? Ingressos vendidos, público ansioso, palco à disposição só que sem cenário! Suspender as apresentações? E o bom nome do grupo, como fica? Culparmos a ferrovia, nossa colaboradora e parceira pelo ocorrido como desculpa? Só haveria uma solução, ou seja, improvisarmos os cenários, utilizando-nos de algum mobiliário da pensão, já que a peça “As aventuras de um caixeiro viajante” era desenrolada em grande parte em quartos de hotéis.
No horário marcado, com o grupo em total aflição à coxia, é descerrada a cortina e Lobato se chega à boca de cena e num esclarecimento ao público se desculpa, dizendo que os equipamentos cenográficos que compõem o desenrolar da peça (3 cenários pintados sobre lonas) haviam sido danificados pelas fagulhas lançadas pela chaminé da locomotiva e não houve tempo hábil para repará-los. Todavia, o grupo teatral deixaria a critério da platéia o dinheiro dos ingressos àqueles que viessem sentir-se prejudicados, ou lesados em pagar por uma apresentação tosca pela falta de cenários. Para reparar nossos percalços, desde já firmamos um compromisso em retornar após nosso roteiro de excursão, em nos apresentarmos num fim de semana, sem que haja cobrança de entrada, já que a ferrovia arcaria com a locação desta sala cinematográfica.
A peça foi encenada, muito aplaudida durante as quatro apresentações e não houve se quer um centavo de devolução!
Os cenários foram entregues em Ouro Preto cinco dias depois!
Como pode se ver, este entrelaçamento cultural funcionou em prol dos interioranos. O “bem vivido” Lobato é a prova viva desta outrora parceria bem sucedida, em que a cultura teatral irmanou-se a ferrovia a projetar nossos abnegados artistas por este Brasil afora...
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