Um artista chamado Abdon
Entre a gama de anônimas pessoas que tiveram parte da sua vida ligada às ferrovias, a ter nas plataformas das estações e nos trens o seu dia-a-dia pela sobrevivência ter na informalidade do trabalho, a expor e oferecer seus produtos e serviços aos que das estações se utilizavam nos embarques e desembarques, não poderia passar em branco um personagem, Sr. Abdon, cuja profissão de caixeiro viajante na ingrata tarefa de vendedor de livros – ingrata por ser, como hoje, de difícil venda, ainda mais em décadas passadas – e, que por ter o dom artístico do desenho, complementava seu sustento se oferecendo a retratar pessoas em altos-retratos sobre crayon ou em tela sobre óleo. Expondo alguns de seus trabalhos às plataformas, ali permanecia à espera de alguém interessado, ou ser procurado na possibilidade à reprodução de retratos, cuja qualidade das fotos apresentadas, em preto e branco, se faziam críticas em todos os sentidos. Afinal, fotografia era uma arte recém-surgida e havia óbvio, muita carência de profissionais com alguma técnica.
Anos se passaram, quando meu pai Luiz numa das suas viagens em visita aos fornecedores de laticínios ao seu negócio no Rio de Janeiro, se surpreendeu ao encontrar à plataforma da estação de Cruzeiro, SP, o colega Abdon exercendo suas atividades artísticas, vez que segundo revelou, deixara a laboriosa profissão de caixeiro viajante, principalmente ligada a livros, pois além de sacrificante lhe trouxe enormes prejuízos, embora tenha sido obrigado por circunstâncias, a quase abandonar a arte da pintura, onde se viu a deixar as cidades que funcionou por longo período.
O motivo desse desaparecimento repentino, deveu-se a um contratempo, talvez por ingenuidade, ao entregar uma obra onde pintou o autorretrato, em corpo inteiro, de uma mulher a mando de um abastado e famoso latifundiário e político, o qual fornecendo uma foto, em que a ser reproduzida se representava vestida, era expô-la despida em pose bem ousada, tendo um sinal de nascença à coxa direita.
Claro que a pintura levou algum tempo a ser concluída. Ao terminá-la, o tal mandante ao comparecer no improvisado atelier de Abdon, aos fundos da estação de Itajubá, onde guardava seu material artístico, com permissão do chefe, deslumbrando-se diante da obra, teceu efusivos elogios pela beleza e sensibilidade do artista, cujo talento nada ficava a dever de qualquer renascentista ou contemporâneo. Após efetuar o pagamento, pedindo total sigilo, o solicitou entregar em determinada cidade no endereço apresentado. Partindo no expresso rumo ao destino, lá se foi Abdon com sua obra bem embalada e protegida no vagão do carro-correio.
Chegando à cidade indicada, Ouro Fino, deixando o trem, locando uma charrete logo chegou ao endereço do destinatário, onde, após bater ao portão, foi atendido por uma serviçal a dizer que a pessoa procurada havia se ausentado momentaneamente e seu marido só mais tarde, pois estava na lida da fazenda. Estranhando tal informação, resolveu deixar o quadro e mesmo com a pulga atrás da orelha, regressou à estação na charrete que o esperou, já que tencionava aproveitar sua passagem por Ouro Fino para expor suas obras e tentar alguma reprodução fotográfica.
Instalado à plataforma, observa que um grupo de quatro pessoas se chega um tanto apressado, em cujas cinturas, coldres mostravam luzentes revolveres, dirigindo-se à administração. De repente, um agente ferroviário espavorido e assustado, se chega a Abdon e pede para se escapulir ou se esconder rápido, porque aqueles homens chegados o procuravam, pois o fazendeiro, o patrão, queria que levassem o tal pintor que havia estado à sua casa pela manhã, no intuito de se explicar como havia conseguido pintar aquele quadro e obviamente a mando de quem?
Juntando suas tralhas rapidamente com o auxílio do agente, ocultou-se no interior de um vagão de carga e lá ficou até ser avisado que os homens haviam deixado a estação e que voltariam mais tarde, mas que passariam a procurá-lo pela cidade. Orientando-o, como alternativa, a pegar o trem das 15:45 hs até Águas de Lindoia, SP, lá foi o pobre Abdon, até então inocente, após saber que sua obra fora o “pivô” da encrenca, depois do fazendeiro tomar conhecimento de tamanho ultraje, ter a negativa de sua mulher de nunca haver posado a algum pintor e se sentir difamada injustamente, segundo lhe passou o agente, ao embarcar ocultando-se no reservado(toalhete) ao vagão da 2ª classe.
Tremendo como vara verde, Abdon assustado, pôs-se a lamentar, que fora vítima de uma trama ardilosa de um inescrupuloso adversário político, que o usou para vingar-se de algum desafeto ou vingança. A partir daquele dia, Abdon, evitou percorrer o sul de Minas, no que lhe causou muita tristeza e imenso prejuízo, pois o obrigou a se enveredar por outras bandas à procura de trabalho, onde sua arte pudesse ser novamente reconhecida e passar a residir em Cruzeiro, após viver como um nômade por bom tempo.
Neste reencontro há mais de 10 anos sem ter qualquer notícia do ex-colega, Luiz penalizado pelo amigo e artista, o deixou um pequeno retrato de sua mãe, Vó Hermínia, para retratá-la do busto acima. E que o avisasse por estar pronto a remetê-lo via ferrovia ao Rio de Janeiro pelo Correios & Telégrafos. O que se verificou 25 dias depois.
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