Utopia torna-se realidade!
De súbito tenho a atenção desviada, em meio aos turistas que se chegavam à plataforma da estação de São Lourenço, ao observar uma senhora em cadeira de rodas, acompanhada de duas outras a empurrarem o veículo, que se deslocando, posicionam ao meu lado junto à parede. Deixando a amiga, as duas saíram a dizer que iriam à procura do vagão onde tinham as passagens determinadas.
Sem que me preocupasse, a cadeirante me tocando o braço, indaga se ela de fato poderia viajar no trem, pois acharia difícil acessar a escada do vagão por ser estreita. Aliás, resignada, não via com isso qualquer contrariedade, ou mesmo discriminação, já que estes vagões eram oriundos de uma época em que deficiente físico, pela sociedade, era considerado um ser inválido, por tanto, inútil em quaisquer perspectivas de integrar-se a vida normal, a não ser limitar-se ao que o destino havia reservado. Retrucando, respondi que hoje felizmente não mais acontece, dado ao avanço tecnológico e a conscientização das pessoas em solidariedade a dividir consigo o seu cotidiano. Óbvio, ainda existem exceções. Ansiosa, Dona Esmeralda como se disse chamar, na expectativa de poder desfrutar do passeio, contou que para ela seria uma das realizações máximas de sua vida, pois desde criança sonhava em poder viajar num trem Maria Fumaça, mesmo sendo sua cidade natal desprovida de ferrovia e trem só em fotos e pelos jornais.
Dizia que após a doença que a vitimou (poliomielite), ai tudo se desmoronou e o sonho se desfez. Confinada a uma cadeira e cama, passou sua infância enclausurada num quarto, limitada a sua janela, para finalmente, aos 10 anos, deixar a clausura indo morar no Rio de Janeiro, onde vive até hoje e pode pela cadeira de rodas, desenvolver então os limitados “passos” à busca de uma vida quase normal, no mundo o qual passava a descobrir, e, com os sonhos acalentados na infância a se tornarem realidade. Todavia um deles recrudesceu, quando posteriormente foi morar no bairro Riachuelo, zona norte do Rio, onde permanece até hoje, cujas janelas do apartamento se descortina o leito ferroviário da Central do Brasil (hoje Super Via). Assim que passou ali a residir, teve a oportunidade de ver pela primeira vez uma Maria Fumaça, ao vivo, puxando vagões de carga, bem da verdade por pouco tempo, pois este tipo de veículo a vapor foi retirado de circulação tempos depois.
Anos se passaram, a vida seguiu com suas pernas rodantes acompanhando a evolução, mantendo-se azeitadas, dispostas ainda a superar desafios nesses 74 anos, e, finalmente, aqui está, em São Lourenço, cheia de alegria nesta plataforma, vendo de perto o Trem Maria Fumaça que tanto sonhou em conhecê-lo e poder viajar. Agora, a metros de ter o seu sonho concretizado, aflita deixa transparecer o visível receio de não poder torná-lo real.
Solicitando permissão, coloquei as mãos sobre as guias da cadeira e impulsionando-a, fui à direção da locomotiva 327, que luzente e fumegante, aguardava a autorização de trafegar. Admirando-a, visivelmente emocionada, balbuciona algo no instante que suas amigas a encontram, falando sobre o vagão cinco e seus lugares. Apresentando-as, conduzi D. Esmeralda seguida pelas companheiras até o vagão, onde com ajuda de um cidadão, a colocamos em sua poltrona, sem que tivéssemos qualquer transtorno ou problema.
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Ao deixar o vagão, pois o fluxo de turistas começava a acessá-lo, ao despedir-me, lhe informei que deixaria instruções na administração da estação, para que a auxiliassem no retorno do passeio a fim de se utilizar da cadeira, vez que preferiu deixá-la na estação. Fazendo questão de abraçar-me, como fez ao curvar-me, falou-me: “- Obrigada, não tenho palavras a lhe agradecer.” Apertando-me a mão, nesse exato instante o apito ecoou o primeiro sinal, destinado ao embarque. D. Esmeralda franzindo a testa, arregalou os olhos, para logo a seguir cerrá-los, deixando escorrer pela face uma lágrima, talvez pela emoção de realizar o seu sonho quimérico, acalentado durante a vida, ou seja; estar numa Maria Fumaça, pois a utopia tornou-se realidade! Era só questão de tempo...
Naquele instante, sobre forte emoção, levado pela felicidade de poder oferecer um pouco, ou melhor, uma alegria incomensurável aquela mulher, que teve pela vida todo seu desejo tolhido por uma condição negada duramente pela doença, mas que procurou suprir se utilizando de recursos físicos para fazer com que vivesse com alguma dignidade junto a sociedade e ali naquela poltrona, no instante que escuta soar aos ouvidos os apitos talvez lamentosos de uma Maria Fumaça, que teve por alguns raros momentos visuais da sua janela ,mesmo a distância , apreciá-la conduzindo vagões de cargas e agora, aqui sentada à poltrona, vê pela janela as pessoas a olharem o trem como foi no seu passado, é justo que pela face role essa lágrima em poder alcançar e tornar o sonho quimérico o qual acalentou ao longo da vida, mas que hoje passou a ser real.
Confesso que tive tal emoção em ver D. Esmeralda dentro daquele vagão, como também sentir ao me imaginar sendo o responsável por poder produzir a ela esta grande emoção... Ou seja, estar num vagão tracionado por saudosa locomotiva, cujo apelido, ou alcunha foi e é, conhecida como Maria Fumaça, que hoje a vida a presenteou aqui no alto dos seus 74 anos no passeio turístico entre as cidades de São Lourenço e Soledade de Minas em ida e volta num percurso de 20 Km.
José Luiz Ayres
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